Algumas considerações sobre o melhoramento cognitivo

A compreensão humana de si mesmo e como um espaço psicológico interior ocorreu nos primeiros sessenta anos do século XX nas chamadas sociedades industriais e liberais democráticas do Ocidente.

Essa nova forma de se compreender trouxe uma linguagem psicológica de autodescrição para a ansiedade, a depressão, o trauma e para os casos de extroversão e introversão. Assim como o uso de testes psicológicos de personalidade e inteligência, ou para a orientação vocacional, os quais colaboravam para o surgimento de psicotecnologias – com a comercialização de produtos, e de psicoterapias.

A partir dessa nova forma de se compreender, a psicofarmacologia e a neuroimagem têm apresentado significativos avanços no estudo do cérebro, gerando um sensível impacto na saúde e no bem-estar de milhares de indivíduos. Esses avanços podem ser percebidos tanto na precisão dos diagnósticos, como na oferta de novos tratamentos e produção de drogas mais específicas para pacientes das áreas da psiquiatria e da neurologia.

By Gláucia Cristina da Silva/ Germany 2016

O melhoramento cognitivo

Atualmente, a neuroimagem e a psicofarmacologia tem apresentado significativos avanços no estudo do cérebro, gerando um sensível impacto na saúde e no bem-estar de milhares de indivíduos.

O desenvolvimento na área da psicofarmacologia também tem possibilitado aos pesquisadores “intervir nos sistemas emocional, semântico e de funcionamento da memória”. Como forma de um primeiro tipo de intervenção no processo cognitivo, há a prescrição de drogas que são utilizadas em bloqueios ou para a reversão de processos de “medos não conscientes” resultantes de eventos traumáticos que podem se tornar uma patologia e provocar o denominado Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT) ou “uma doença mental debilitante similar”. Esses fármacos são utilizados, nesses casos, como forma de terapia para tratar transtornos mentais.

Um outro tipo de intervenção dessas drogas, é o uso para a melhoria da formação, armazenagem e capacidade de recuperação semântica de longo prazo, além da memória funcional de curto prazo. Isto acontece para que “a capacidade considerada normal seja fortalecida” com o uso destas drogas. Neste caso, há uma forma de melhoramento cognitivo.

Uma distinção importante a se fazer é a noção do termo “melhoramento”. De acordo com o artigo Beyond Therapy, os melhoramentos modificam características físicas e mentais em indivíduos saudáveis, incluindo campos da cirurgia cosmética, o aumento na performance física em atletas ou melhoramentos psicofarmacológicos.

Para alguns autores, como Bostrom e Sandberg, o melhoramento cognitivo pode ser entendido como uma “amplificação ou extensão das capacidades básicas da mente” por meio de “melhoramentos ou aumentos internos dos sistemas de processamento da informação”.

Nesse contexto, o processo cognitivo pode ser entendido como a forma de organizar as informações recebidas pelo organismo, incluindo a percepção; a atenção; a compreensão; a memória; além do modo como se faz a argumentação e a coordenação dos resultados.

Ainda que o termo melhoramento seja esclarecido, é crucial, também, diferenciá-lo do que é “tratamento”. De forma resumida, o termo “tratamento” pode ser explicado como o uso do poder biotecnológico para fins de restaurar indivíduos que estejam com alguma doença, deficiência, ou dano conhecidos ao seu estado normal de saúde, tanto mental como físico.

Uma intervenção ou tratamento pode ter a característica de uma terapia, se for feito para se corrigir um “defeito específico ou uma patologia”. O melhoramento seria uma “intervenção que aprimora” um sistema, ao invés de remediar ou reparar uma disfunção específica.

 Alguns métodos de melhoramento

Existem alguns métodos convencionais de melhoramento bem estabelecidos, tais como: educação e treinamento, que são culturalmente aceitos. Entretanto, os métodos não convencionais de aprimoramento cognitivo, onde há o envolvimento de  drogas nootrópicas; terapia de genes ou implantes neurais têm recebido algumas considerações por serem técnicas relativamente novas e levantarem dúvidas em relação aos usos potenciais; à segurança; à eficácia; ou às consequências sociais; além dos problemas relativos à regulação e para o futuro da humanidade.

Os estudos comparativos em ratos têm demostrado que a exposição a um ambiente enriquecido aliado ao uso de drogas para melhoramento cognitivo melhora a performance, além de produzir mudanças similares na rede neural, ainda após o tratamento ter sido encerrado.

No caso dos moduladores denominados “working memory”, há uma variedade de melhoradores químicos circulando no mercado de fármacos. Entre eles se encontram a Ritalina (inibidor de dopamina e de norepinefrina) que é largamente usada para “aumento de memória de trabalho numérica, verbal e espacial, estima-se que 10% da população americana, em idade inferior a 20 anos faça uso desta droga”; e o Modafinil (ligado à histamina) que propicia uma vigilância mais calma, envolve o pensamento criativo e a capacidade de solucionar problemas – é um possível melhorador das funções de pilotos, motoristas de longa distância e para usos militares.

Já a estimulação transcranial magnética (TMS) pode “aumentar ou diminuir a excitabilidade do córtex”, de modo a mudar a plasticidade do cérebro em diferentes níveis. A TMS é considerada bastante versátil por ser um método de melhoramento “não invasivo”.

Outra ferramenta de melhoramento para fins de amplificar as habilidades cognitivas é denominado “external hardware and software systems”. É uma forma de criar links para uma melhor interação entre o sistema externo e o humano. São os chamados “exoesqueletos”, que acoplados ao corpo humano lhe conferem capacidades estendidas – são exemplos de aplicações do exoesqueleto: adição para a visão, reconhecimento de face, e coordenação de time.

As interfaces cérebro-computador são implantes digitais que podem ser conectados a qualquer parte do corpo e poderão ser capazes de melhorar o uso e o acesso a outras ferramentas de software, como a Internet, entre outras aplicações de realidade virtual.

E, por fim, a inteligência coletiva, como a World Wide Web e e-mail que podem ser considerados um dos tipos mais poderosos de software para melhoramento cognitivo desenvolvido para informação, por ser uma ferramenta que melhora a cognição por meio de métodos de colaboração individual.

Bostrom e Sandberg, percebem que alguns problemas em relação ao melhoramento cognitivo advém de fatores que estão presentes na nossa sociedade e afloram sempre que um evento novo que envolva a biotecnociência surge, tais como: os melhoramentos são institutos novos e, consequentemente, não existe ainda uma “sabedoria concebida” para lidar com o uso em potencial, a segurança, a eficácia, ou eventuais consequências sociais; podem ser controversos em diversos momentos; há necessidade de uma regulação específica (o que pode impedir avanços num determinado campo); e podem surgir consequências para a sociedade, a longo prazo, implicando diretamente no futuro da humanidade.

O cérebro neuroquímico

A possibilidade crescente do uso de drogas para melhoramento cognitivo pode aumentar as expectativas sociais sobre o que se pode e o que se deve fazer tanto no âmbito do trabalho como em outros aspectos da vida.

Um reflexo desse novo modo de desempenho e produção na atualidade pode ser percebido pelos indivíduos como quem não se sente “à altura de acompanhar o ritmo ou a aceleração requerida por seu posto de trabalho e por suas responsabilidades”, gerando uma “fadiga crônica” impedindo-o de usufruir seu descanso e, inclusive, os momentos de lazer.

Pouco a pouco, surgem os transtornos de memória, de raciocínio, de confusão e desorientação mental. Na esfera da vida privada, há relatos de transtornos do sono e da sexualidade, além de uma irritabilidade constante.

Em função da importância dada ao uso desses novos psicofármacos associada às exigências do mercado no cenário econômico atual, os indivíduos podem experimentar uma pressão social indireta para aprimorar o funcionamento cognitivo com o fim de uma melhor competição com os colegas no ambiente de trabalho, escolas e universidades.

Aqueles que se sentem envolvidos nessa sensação de mal-estar de si mesmo, experimentam uma ética de autocontrole, de promoção de estilos de vida e de autorrealização que é hodiernamente propagada pelas companhias farmacêuticas e pela mídia em uma falsa sensação de que podem, via medicamentos, “retomar a carga de suas próprias vidas”.

E como fica a ética no melhoramento?

O melhoramento cognitivo em indivíduos saudáveis requer uma cuidadosa discussão interdisciplinar por envolver questões individuais, sociais, éticas e legais.

As intervenções parecem ser promissoras. Contudo, podem existir alguns imprevistos não esperados para o uso off-label desses fármacos. Esses medicamentos ainda são experimentais e, infelizmente, os efeitos de longo prazo ainda são desconhecidos pelos médicos e cientistas.

Para alguns autores, como Francis Fukuyama, a “natureza humana é fundamental para nossas noções de justiça, moralidade e de uma vida digna”, e esses pontos basilares de nossa natureza sofrerão profundas modificações com o advento da era do melhoramento, com implicações políticas para o século XXI, além de situações controversas por desafiarem as noções de afeto cultivadas com base na igualdade humana, assim como na escolha moral do homem.

Um dos aspectos centrais na discussão sobre os fármacos para o melhoramento cognitivo, é, sem dúvida, a segurança. Já no nível relacionado ao indivíduo devem ser incluídas questões sobre autonomia, autenticidade e identidade pessoal. E para as questões de nível social, é importante que se verifique os pontos relacionados com a “coerção indireta, igualdade de oportunidades e o desenvolvimento de uma justiça distributiva”.

Além disso, de acordo com o princípio da igualdade e para se obter uma certa justiça social, é necessário que a distribuição dos melhoramentos cognitivos seja feita de forma equitativa entre todos os indivíduos de uma sociedade.

O melhoramento cognitivo poderá ser uma oportunidade que interesse à sociedade e aos governos. Desde que estes últimos invistam no aprimoramento da educação, os resultados deste investimento serão benéficos para ambas as partes.

Por outro lado, observando os diversos aspectos da vida contemporânea, deve-se atentar para que as medicações utilizadas para o melhoramento cognitivo não se tornem um problema caso sejam encaradas apenas como um paliativo que mascara algumas questões mais profundas da natureza humana.

Considerações Finais

A sociedade ocidental de hoje aprendeu a buscar não mais um tratamento para uma doença ou a prevenção de um distúrbio, mas uma opção de consumo.

Existem questões que incomodam quando se menciona a possibilidade do melhoramento humano (seja ele reprodutivo, cognitivo ou físico) elas dizem respeito ao impacto de oportunidades na sociedade e se uma cultura de aprimoramentos poderá criar uma rígida estrutura econômico social e produzir um abismo entre as classes.

Chegamos num ponto de desenvolvimento biotecnocientífico onde não temos certeza se desejamos ajudar as pessoas a recuperarem a sua saúde ou se devemos reconstruir nossos corpos e mentes.

A neurociência tem nos mostrado, a cada dia, muito sobre a natureza humana, isso nos indica que pode haver mais questões relativas aos direitos humanos implicadas no desenvolvimento da biotecnociência do que podemos prever. Devemos nos atentar para um programa de planejamento das instituições e a implementação de políticas públicas que possam ser capazes de nos proteger de nós mesmos.

Por Gláucia Cristina da Silva

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